Performancidade: entrevista com Ricardo Aleixo
Publicamos a seguir um trecho da entrevista realizada por Natália Alves, integrante da Terra Preta Cidade, com Ricardo Aleixo, onde, em um encontro especial, Ricardo nos conta seus enredamentos com a cidade, espaço urbano, o corpo, a performance, questões raciais, entre outras coisas.

Ricardo Aleixo é poeta, artista visual e sonoro, performador, pesquisador das poéticas intermídia, cantor, compositor, ensaísta e editor. Publicou, entre outros, os livros Pesado demais para a ventania (Todavia, 2018), Antiboi (LIRA/Crisálida, 2017 — finalista do Prêmio Oceanos 2018) e Modelos vivos (Ed. Crisálida, 2010 — finalista dos prêmios Portugal Telecom e Jabuti 2011). Já fez performances na Alemanha, na Argentina, em Portugal, na França, no México, na Espanha, nos EUA e na Suíça. Integra antologias, coletâneas e edições especiais de revistas e jornais dedicados à difusão da poesia brasileira nos EUA, na Argentina, em Portugal, na França, de País de Gales, em Angola e no México. Tem participado de exposições coletivas, como Poiesis < Poema entre pixel e programa > (RJ, 2007), Radiovisual — Em torno de 4’33” (Bienal do Mercosul, Porto Alegre, 2009) e Poética Expositiva (RJ, 2011). É curador do festival ZIP/Zona de Invenção Poesia&. Edita a revista Roda — Arte e Cultura do Atlântico Negro e a Coleção Elixir, de plaquetes tipográficas. Desenvolve seus projetos de criação e pesquisa no LIRA/Laboratório Interartes Ricardo Aleixo e no KORA/Kombo Roda Afrotópica, ambos localizados no bairro Campo Alegre, região Norte de Belo Horizonte.
A entrevista foi realizada em outubro de 2019 e publicada pela primeira vez em janeiro de 2021.
Pensando nessa relação do corpo com a cidade, como é que a cidade reverbera no seu trabalho? quando você, por exemplo, desenvolve uma performance, você institui uma espacialidade ali, uma territorialidade. Como você imagina isso?
Eu comecei antes mesmo de fazer uma performance que recebesse esse nome, eu já havia sido levado a pensar no que é a relação da minha presença no espaço urbano, o que é que significa para as pessoas brancas em contato com o corpo negro. Com uma pessoa negra eu brinco, mas é sério isso. Foi 1987, quando eu fui ao Rio de Janeiro para um encontro de escritores negros que eu fiz a minha primeira performance e que volto a fazer todas as semanas, quando eu vou pro centro das cidades onde eu estou e essa perfomance é atualizada. Ninguém nunca viu e quem viu não sabe que é uma performance: eu caminhando numa ruazinha muito tranquila de Botafogo (RJ), vem na minha direção uma mulher branca que puxa a bolsa contra o próprio corpo para proteger a bolsa, eu esperei ela chegar bem perto e puxei a minha bolsa também para proteger dela. A segunda vez que eu fiz isso já estava fazendo como performance, mas eu não era ainda um artista da performance, não tinha nenhum conhecimento sobre isso. Então essa é a performance que eu mais repeti e todas as que eu faço recuperam de algum modo esse gesto inaugural, esse gesto da surpresa diante de um corpo negro. E da parte de quem vê esse corpo negro um leque de expectativas, quase todas elas ligadas ao perigo que aquele corpo evoca. “Estou correndo algum tipo de perigo”, que pode ser quanto a segurança dos meus bens, no caso das mulheres e dos homens, mas também no caso das mulheres é isso e mais a possibilidade de assédio, estupro. Esse corpo masculino negro sugere isso. E como eu tendo a pensar semioticamente a presença do corpo no espaço, a presença do corpo que é espaço e funda espaços no espaço urbano, eu tiro partido disso sempre. Ora acirrando pontos, por meio da iluminação, por meio dos sons, por meio dos textos — pontos que levam a um tensionamento ainda maior dessa noção de perigo que o meu corpo evoca, ora desmontando isso, mas não para propor uma conciliação. É impossível qualquer conciliação quando se fala do ponto de vista de uma pessoa negra, nenhuma pessoa negra é portadora do direito de propor conciliações. Nós estamos entre dois pólos, o pólo da agressão que vai ser respondida a altura ou o polo da rendição. Nós somos as pessoas que vamos ter que nos render diante do poderio, do poder branco ou as pessoas que vão justificar a violência contra nós. “Ah, mas ele não era um bandido”, mas podia ser. Mesmo no palco, o que se vê é um corpo negro que poderia ser o de um agressor.
É importante ler textos como os da Angela Davis sobre o mito do estuprador negro. Isso cumpre uma função, um papel. O que eu faço é tornar isso o mais complexo possível, não dar isso de bandeja, não entregar isso como uma charada já resolvida. É preciso que esse corpo que eu apresento na cena, que ele seja lido semioticamente, que ele seja lido esteticamente. E ler esteticamente é ler por uma chave que tornou-se possível dos anos 60 pra cá, que é a entrada das pessoas negras no conjunto das pessoas desejáveis midiaticamente, atrizes e atores negros que podem ser pensados como objetos de desejo. Então o corpo do artista negro é esse corpo desejado, esse corpo que se pode desejar sem que se pense nos riscos que se corre. A figura do Djavan, por exemplo, para ficar entre os homens.
Só que o meu corpo além dele pensar, ele é o lugar de uma voz que propõe questões conceituais, é uma dupla aberração, porque ele esta se recusando ao lugar que poderia ser ocupado serenamente que é o do corpo que se pode desejar e ele está se deslocando para um lugar de pensamento, que não espera que negros ocupem isso à cena pública para propor reflexões teóricas, não no campo da arte. No campo da geografia sim, já tem o exemplo de Milton Santos, embora existam todos os cuidados para que ele não seja inspirador de ninguém, foi “o gênio Milton Santos”, isolado. E assim nós podemos pensar várias áreas, na história o Joel Rufino, na antropologia e comunicação Muniz Sodré, exemplos de pessoas que são quase que apartadas da sua dimensão corpórea embora Muniz seja um capoeirista, tocador de violão, mas não é isso que é ressaltado nele, é ressaltado o brilhantismo, a capacidade polilingue, fala cinco ou seis línguas, é sempre um lado que destenciona — “ah, é um erudito”. Estar em cena movendo essa máquina performativa em que as coisas não acontecem numa sucessão linear é da ordem de um enfrentamento contínuo em que quem detém as regras do jogo, pelo menos por aquele breve instante, sou eu. Isso não aconteceria se eu enunciasse os meus aprontos como espetáculo teatral, show musical, porque aí os códigos são os do sistema de artes, do sistema da indústria musical, do entretenimento. A performance não, eu posso mudar as regras conforme eu queira. As regras no tocante a tudo, a espacialidade, as temporalidades. Posso apagar as luzes todas e ficar fazendo teoria e faço isso eventualmente, mas não como um jogo inconsequente e sim como uma forma de fazer com que esse homem que é sempre mordido pelo cão, em algum momento experimente a possibilidade de morder o cão. Vai acabar em algum momento, vai ter fim, mas aquele breve momento é daquilo que eu chamo de metareflexão. “Vamos pensar o pensar, vamos pensar porque temos pensado dessa forma”.
Agora que nem vemos esse corpo, esse corpo que nos amedronta na rua quando encontramos com ele, que pode nos assaltar, nos estuprar. Agora esse corpo tornou-se uma voz só que fala, uma voz que fala sem que veja o corpo, isso assusta muito mais porque nós aprendemos que voz sem corpo só a de Deus. Esse corpo assume uma dimensão muito mais assustadora.
Você citou o Milton Santos, a gente já conversou sobre isso mais brevemente, mas queria que você falasse sobre ele enquanto intelectual e influência que possa ter na sua reflexão, no seu trabalho.
Eu trabalho com espaço, seja como poeta ou seja como performador, o espaço é uma matéria composicional para mim e poucas pessoas, poucos pensadores conseguiram um refinamento de reflexão como Milton Santos. O pensamento dele ultrapassa o que poderia ser o limite da geografia, se oferece generosamente para quer que queira pensar as categorias de espaço, numa relação íntima associada com o tempo ou com as temporalidades com o Milton Santos, que é como muitos dizem — e eu sou um desses — um geógrafo pensador, alguém que põe a geografia para pensar, devolve, atribui a geografia essa capacidade de através de suas próprias especificidades nos trazer ferramentas para pensar o mundo.
Eu entro em contato com o pensamento dele no final dos anos de 1980, primeiramente fascinado com a existência de um negro retinto que se notabiliza nesse campo tão difícil que é a geografia, fora do país, durante o exílio. Quer dizer, uma celebridade mundial. Isso me tocou primeiro. Antes de conhecer o pensamento dele, eu conheci um homem negro notável, brilhante, que se destaca no seu campo de atuação fora do Brasil. E acompanhei, como quem acompanha um esportista ou um artista pop, a volta dele para o Brasil, quando ela passa a ser celebrado e me agrada ali especialmente o modo como ele recebe essa celebração. Ela fala na cara dos repórteres “vocês estão me tratando assim agora, mas se eu precisar de atendimento médico, é como um negro que eu vou ser atendido, se eu precisar pegar um táxi vou ser visto como um homem negro qualquer”’ e isso me mostrou mais do que tudo que já havia lido até então, a grandeza do Milton, que se sabia alguém marcado para o pior que a sociedade brasileira tem a oferecer para a população negra independente de ser quem é.
Em termos metodológicos e conceituais eu devo à ele a superação de algo que teria me levado para outros lugares. Eu li uma entrevista dele, que não foi uma aula que ele deu, não foi um artigo que ele escreveu, é um ponto por trás de uma entrevista que ele deu que me serviu como um tratado, ele fala: “precisamos não pensar por meio de exemplo”, eu vi que eu tinha esse vício de dar um exemplo e tentar por meio da explicitação desse exemplo cumprir o que seria o papel de uma reflexão digna desse nome. Acho que eu aprendi a pensar com Milton Santos. Eu que já devia a ele tudo que ele nos trouxe sobre espaço, sobre território, eu aprendi também a pensar o pensar de outra forma, o exemplo pode até aparecer, mas como ilustração em um etapa posterior para um conceito já suficientemente clarificado e não o contrário. Exemplo não pode substituir a reflexão.
A noção de espaço é muito importante para o seu trabalho. Por que dessa importância?
Por causa do corpo, que é o primeiro espaço de quem faz performance e é também um elemento presente nessa dimensão reduzida que é a escrita. A escrita também é um ato performativo, escreve-se com o corpo, as mão, escreve-se deitado, sentado, em pé no metrô, isso tudo é da ordem do performativo e tudo isso demanda uma negociação com o espaço. O espaço que é o nosso corpo negocia outras espacialidades o tempo todo.
Aí há um momento da minha trajetória, eu que comecei como escritor, escrevendo a mão, depois no final da adolescência experimentei uma usar máquina de escrever e aí é totalmente diferente a demarcação espacial feita pelo meio da caneta e usando a máquina de escrever. Até que quando eu já tinha 21, 22 anos minha mãe comprou uma máquina elétrica, que é outra relação e eu demoro até a década seguinte, meados da década de 90 para ter contato pela primeira vez com o computador. Quando o espaço deixa de ser o espaço real e passa a ser o espaço virtual, espaço que se vê na tela nem mesmo é o espaço que se verá na página impressa. Isso produziu uma defasagem muito grande, uma defasagem de olhar e de compreensão do fenômeno. Você lida com um espaço na tela que pode ou não se consolidar no expresso. Isso pode ser aterrorizante. O mesmo valendo para cor, para textura, para a inserção no virtual. O que eu fiz para tentar me organizar internamente? Eu progressivamente vim voltando para a manualidade, para o exercício da caligrafia, do desenho e o abandono progressivo do computador como esse lugar de elaboração das coisas. Eu fiquei entre 1999 e 2008, 2009, eu fui literalmente um viciado em tecnologia ao ponto de ter abandonado mesmo as práticas manuais em tudo, na relação com o som, com o texto.
Hoje é um meio de passagem, voltou a ser um meio de passagem para mim, dada a consideração que eu faço do corpo como ele próprio um dispositivo tecnológico, assim como a voz é dispositivo tecnológico. Por que isso? Porque nossos antepassados, nossos ancestrais não chegaram ao mundo já munidos de algo que hoje a gente chama de aparelho fonador, com suas funções já definidas. Isso foi desenvolvido ao longo de milênios. Da mesma forma o aparelho auditivo que também não tinha esse nome, nem as funções que passou a ter com o tempo. Portanto é de tecnologia que falamos quando falamos de entoação, da visão, quando falamos do corpo ereto que aprender a caminhar, que aprende que o caminhar é objetivo é prático, mas tem também alguma coisa no caminhar que já da ordem do prazeroso e aí a gente já vai pra dança. Mas isso não é assim hoje, amanhã, depois de amanhã são saltos de milênios ou pelo menos de centenas de anos. E tudo isso que eu chamo de gestos inaugurais permanece inscrito na nossa corporeidade, como algo que renegocia e renova os termos com os espaços dados. O espaço da casa, da rua, da cidade, são escalas diferentes sempre mediadas por esse primeiro espaço que é o espaço do corpo, é assim que eu vejo isso.
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PARA CONHECER O TRABALHO DE RICARDO ALEIXO
“Meu negro”, de Ricardo Aleixo
Podcast POESIA&, de Ricardo Aleixo
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PARA OUVIR O PODCAST
COMO CITAR ESSE TEXTO
ALVES, N. et al. Coletiva Terra Preta Cidade. Performancidade. 2021. Disponível em: <https://terrapretacidade.medium.com/performancidade-entrevista-com-ricardo-aleixo-b7aa576a2ec7>.