Terra Preta, terra fértil — ano I

Hoje, dia 28 de maio de 2020, completamos um ano de Terra Preta, mais especificamente um ano que cinco mulheres se encontraram para um evento nacional de urbanismo e ali passaram a elaborar pensamentos, propostas e ações no campo da arquitetura e urbanismo, mas não só. Mas no meio de tantos acontecimento que nos arrastam neste ano, o que comemorar?
Terra Preta é herança ancestral, combinação de elementos que possibilita gerar e sustentar vidas. Há histórias que contam que muitos brasileiros não conhecem as particularidades do solo altamente fértil e resistente. Assim como ela, nós nascemos, resistimos e existimos por um trânsito diaspórico de entendimentos de mundo não-brancos que nos permitiram falar sobre arquiteturas, urbanismos, geografias hoje.
Dessa maneira, celebramos a vida contida nesses pequenos gestos que fazem crescer e firmar nossas cidades a cada dia.
Então voltando ao início, viemos aqui contar um pouquinho mais o que de vida à Terra Preta e nos apresentar. Para quem não sabe, faz um ano que nos conhecemos pessoalmente para apresentar a sessão livre “DES-EMBRANQUECENDO A CIDADE: desafios e propostas no campo dos estudos urbanos”, no XVIII ENANPUR Natal. Virtualmente nosso encontro havia acontecido alguns meses antes, quando elaboramos a proposta através de um grupo de facebook. A proposta da sessão livre tomou como referência o processo de constituição das cidades brasileiras, propondo tensionar, a partir de trabalhos de investigações que transitam entre a teoria e prática, algumas das dimensões relacionadas à formalidade hegemônica de produção de/sobre a cidade, ainda pautada em abordagens excludentes e parciais. A naturalização do lugar branco nos estudos urbanos tem gerado enormes prejuízos para a compreensão do espaço urbano brasileiro. E por isso, decidimos encarar. O dia da apresentação da sessão foi quando a Terra Preta se materializou. Um dia e tanto. A partir daí essa vida foi exposta e segue contínua para nós. Um ciclo, um espaço de afeto, de trocas, de referências, de segurança e de mudanças.
Desde o início somos cinco, mas somos muitas outras! Aprendemos a respeitar cada uma em suas particularidades, acúmulos de vida, perspectivas teóricas e redes.

Gabriela Pereira, ou Gaia, arquiteta e urbanista, doutora em arquitetura e urbanismo pela FAUFBA, professora da FAUFBA e do PPGAU/UFBA, integrante do Grupo de Pesquisa Lugar Comum, no qual coordena o Grupo de Estudos Corpo, Discurso e Território. Na ocasião do ENANPUR nos apresentou o trabalho “Des-embranquecer a cidade: apontamentos sobre os marcadores territoriais da negritude”.
“Acho que o significado da Terra Preta tem a ver com questões que a gente elaborou lá para o primeiro episódio. Hoje eu diria que a potência nisso tudo tem a ver com a possibilidade de criar uma condição para realização de trocas horizontais sem constrangimentos. Da construção de uma possibilidade de diálogo a partir de experiências e acúmulos distintos de mulheres negras, com trajetórias diferentes mas que de alguma forma se interseccionam e informam, coletivamente, sobre experiências do fazer cidade, à partir das quais o exercício reflexivo se realiza racialmente e generificamente afetados. Para mim é isso, a Terra Preta é a criação de uma de uma condição favorável para realização de partilhas intelectuais e afetivas honestas entre mulheres negras, respeitando distinções e histórias de vida. Entendendo que há um lastro que conecta essa junção, mobilizada pela perspectiva de construir um movimento para além do individual, e um desejo intencional de olhar para a cidade, olhar para as questões urbanas, para as produções da arquitetura e seus processos informados por todas essas dimensões que constituem a vida negra em um país multirracial e pós-colonial como o Brasil. Isso ajuda a pensar não só o Brasil em si, ou a negritude, mas essa condição de existência informada pelo dispositivo da racialidade que constitui à todes. E escapa de uma ideia reducionista de nos colocar, meramente como refém dessa empreitada de produção de cidade.” — Gabriela Gaia
Natália Alves, comunicadora social, mestra em arquitetura e urbanismo (NPGAU-UFMG), doutoranda no IPPUR-UFRJ, apresentou o trabalho “Feminismo negro e espaço: uma abordagem interseccional”.
“Num primeiro momento a Terra Preta (quando sequer tinha esse nome) significou a possibilidade de, junto com outras pesquisadoras negras, elevar a nossa voz em espaços de produção do conhecimento tradicionalmente hegemonizados pelo pensamento eurocêntrico, como a acadêmica. Depois ela passou a ser a recusa do fim. Criamos a Terra Preta para não nos separarmos, para permanecermos juntas, reconhecendo a potência do nosso encontro. E ainda, para compartilharmos nossos trânsitos em vários espaços, na academia, com movimentos, em lutas e espaços diversos de formação. Buscamos olhar para a cidade a partir das diversas formas de existência negra e como elas interpelam de forma crítica sua conformação. Aparentemente, ao nomearmos-nos geramos a força necessária para adubar nossa conexão. Hoje ela é uma presença constante na minha vida. Tão constante que eu já nem me lembro como era sem ela. Trocamos materiais, discutimos opiniões e referências, comentamos os acontecimentos, compartilhamos nossas distintas trajetórias e perspectivas”. — Natália Alves
Emmily Leandro, arquiteta urbanista, pós-graduada em Planejamento e Gestão Urbana (FAU-USP), mestranda no IPPUR/UFRJ, integrante do @ConcretoRosa e do @ocoletivomassa, apresentou o trabalho “Movimentos culturais afro-brasileiros e seu potencial transformador nos territórios”.
“A Terra Preta me permitiu conectar com várias questões importantes e simbólicas como a relação de raça e gênero na arquitetura e nas cidades e como podemos avançar através de uma perspectiva decolonial. Temática ainda muito excluída nos espaços acadêmicos. Com a Terra Preta sei que de forma coletiva podemos transpassar esses processos de exclusão e criar novos espaços sem deixar de ocupar os existentes e disputar as narrativas. Ver tudo isso acontecendo e se tornando possível foi e é um processo lindo de aprendizado e troca.” — Emmily Leandro
Maria Luiza de Barros, arquiteta urbanista, mestre em geografia (PPGG-UFES), pesquisadora cultural, co-criadora e coordenadora de pesquisa da @CidadeQuintal. No ENANPUR apresentou a pesquisa “Na trama a cosmopolítica afro-brasileira: a cidade em perspectiva decolonial”.
“Disputamos a cidade pela perspectiva antirracista e temos no movimento entre a arte, música, audiovisual, dança, entre tantas outras linguagens, o tecido que permite a costura da nossa existência, das mudanças prático-teóricas e do pensamento crítico na arquitetura e no urbanismo, mas não só. Abrir caminhos é multiplicar caminhos e em certa medida, acredito que é o que temos feito. É esse espaço que nutre de força para retomar diariamente à essa atuação que escolhi e que também é nossa.” — Maria Luiza de Barros
Luciana Mayrink, Arquiteta Urbanista do Br Cidades com Mestrado em Arquitetura pela FAU-UFRJ, estuda Política e Planejamento Urbano pelo IPPUR-UFRJ, apresentou o trabalho “Processo de branqueamento do território e o Projeto de Estruturação Urbana Vargens. A expansão urbana no Rio de Janeiro”.
“Faz um ano que uma pessoa muito querida fez uma chamada num grupo de facebook. O espaço virtual, que é palco de discussões e brincadeiras, tornou possível a germinação da aproximação de cinco mulheres da área da Arquitetura e do Urbanismo. Mulheres originadas em locais diferentes de dentro dessas fronteiras enormes que temos, mas que se encontram nos saberes, no gênero e na cor. A possibilidade de construir um trabalho juntas sem nunca nos virmos foi nova e excitante. Uma produção realizada virtualmente que trata de algo muito real, nossas vivências, nossas cidades, a ocupação dos corpos pretos na malha urbana e a negação diária e constante da apropriação dos territórios que possuem um traçado que objetiva a manutenção da segregação urbana que vivenciamos. Tratar destes temas e destes sentimentos, nos fez compartilhar nossas relações com ambiências violentas e cruéis, não obstante nos proporcionou apoio e empatia por meio deste aquilombamento tão seguro e leve que conformamos em nosso espaço virtual. O que sinto depois deste um ano de trabalho e amizade, é muita gratidão, pelo nosso encontro, pelas que vieram antes de nós e por acreditar no que fazemos e no que podemos fazer. Obrigada Terra Preta por um ano de crescimento e de florescimento. Ser parte de algo que constrói um saber, numa escrita partilhada, a partir de tantas referências que foram, e são, intencionalmente apagadas, é resgatar uma ancestralidade que eu não entendia como fazia parte de mim. A Terra Preta concentra o que somos e o que podemos construir se utilizando das nossas experiências na Arquitetura e Urbanismo, e na vivência da cidade enquanto mulheres pretas. Nosso vocabulário eurocêntrico sempre colocou a palavra preto, negro como algo ruim. A terra preta é a melhor para plantio, por isso o nome, apostamos nessa força.” — Luciana Mayrink
E cá estamos. Um ano com muitas outras fabulações, participações em eventos sociais e acadêmicos, podcasts, artigos, novas redes e proposições.

Para comemorar esse aniversário a arte ficou por conta da Alana, em diálogo ao que já foi construído por Sofia Costa. Mulher negra e baiana, Alana é estudante de Arquitetura e Urbanismo, e pelas suas próprias palavras, encontra na arte forma terapêutica de ressignificar anseios há muito engasgados na garganta. Anseios estes que, em se tratando de pessoas negras em um país historicamente racista e higienista como o Brasil, se traduzem em uma busca dolorosa por uma identidade que não seja a das manchetes violentas de um jornal sensacionalista. Essa busca por outra possibilidade de existência, não futura, mas contínua e transcendental, motivou a escrita, através da colagem, de outras narrativas, não inventadas, mas existentes, invisibilizadas e tradicionalmente diminuídas.
Alana faz colagem, pois vê nela a possibilidade de tomar um lugar de fala de pessoalidade, mas também ancestral, pan-africanista, residual e macrocósmica, de quem éramos, de quem somos e de que seremos, tudo numa unidade cíclica, que tento representar. Deste modo, a colagem se apresenta como instrumento que permite retribuir todas as influências que se manifestam em cada ponto de sua formação.
Nesse período aprendemos muito. Uma com as outras e com todas as pessoas com que pudemos trocar, ouvir, falar. Agradecemos imensamente à todas e todos. Seguimos!
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Referências
Podcast Des-embranquecendo a cidade
As coisas de Sofia — por Sofia Costa
A colagem — por Alana Araújo
DES-EMBRANQUECENDO A CIDADE: desafios e propostas no campo dos estudos urbanos. Anais ENANPUR 2019.