Corpo-mapa

Cuide de pedir licença,
Antes de palavrear,
Ao dono da fala, que é
Quem pode lhe abençoar
E transformar sua língua
Em flecha que chispa no ar
Se o tempo for de guerra
E você for guerrear
Ou em pétala de rosa
Se o tempo for de amar (…)
Eu jogo palavra no vento
E fico vendo ela voar
(eu jogo palavra no vento
E fico vendo ela voar)
Estamos de volta nesse território fronteiriço do verbo. Abrimos o segundo episódio com poema Palavrear, do poeta mineiro Ricardo Aleixo e pedimos licença para também jogar nossas palavras no vento. Experimentamos aqui no podcast a oralidade como movimento para alcançar, de alguma forma, quem está escutando aí do outro lado. Retomar a oralidade como forma de elaboração é ancestral. É também atual para se comunicar na turbulência dos tempos velozes. Portanto, erguemos nossa voz para refletir sobre os lugares de enunciação para além da escrita. Unimos letra e voz. Nos importa pensar na potência da co-existência dos diferentes textos, assim como nos lugares que eles podem chegar, ou do que são capazes de provocar.
Embaladas por essas reflexões, adentramos o episódio #2 carregando algumas questões que surgiram no programa e conteúdo de abertura, para pensar à luz dessas linguagens e textualidades plurais. Falamos antes sobre conectar territórios, distanciamentos geográficos e movimento de corpos. Evocamos a Beatriz Nascimento e seu “corpo-mapa de países longínquos” para dar conta, no presente, dos nossos trânsitos ancestrais. De modo que, agora continuamos nas pistas deixada por ela e sua generosa, que tanto nos inspira. Beatriz nasceu em Sergipe em 1942, e como tantos nordestinos, migrou com a família para o sudeste. Mais precisamente, para o Rio de Janeiro. No Rio se formou em história, se tornou ativista do movimento negro e poeta. Foi pesquisadora brilhante, sagaz e refinada. Em seus escritos, Beatriz nos chama à responsabilidade e desafia todos nós a libertar a “memória dos conteúdos estereotipados”, como ela dizia.
Tomamos para nós esse desafio. Como pensar esse corpo-mapa diaspórico, sabendo que ele é resultado de tantos trânsitos? Como evitar a armadilha dos estereótipos sobre seus conteúdos e memórias? Falamos em diáspora, a dispersão dos negros africanos pelo mundo impulsionada no período da colonização, como essa imigração forçada através do tráfico transatlântico de escravizados. Como descendentes dessas negras e negros, nossa condição de existência no presente acumula esse processo histórico. E independente de estarmos no Brasil, Estados Unidos, ou América Caribenha, esse fato comum nos conecta.
A condição diaspórica coloca o próprio trânsito como algo próprio às mulheres negras.
O trânsito acumula distintas temporalidades e geografias. Ousamos ampliar essa noção para além dos trânsitos mais distanciados das muitas Áfricas e incorporamos os trânsitos recentes, como o que informamos agorinha sobre a própria Beatriz Nascimento e sua família, do nordeste para o sul. Associamos também os trânsitos cotidianos, o “corre da existência” diária das mulheres negras pela cidade, subindo e descendo rua, pegando ônibus, metrô, carro, adentrando e integrando lugares . Entendemos que esses diferentes deslocamentos são componentes indissociáveis dessa vida multifacetada.
E como evitar os estereótipos sobre a memória? quando pensamos nos estereótipos da memória, e Estamos falando da forma como as referências à cultura negra, seja em África, ou no próprio Brasil, são difundidas a partir de imagens folclorizadas e sem densidade. Beatriz Nascimento, em artigos recentemente publicados na coletânea “Quilombola e Intelectual”, aponta a urgência de questionar os conteúdos produzidos pelos “historiadores clássicos” sobre a história do negro no Brasil. Ela aponta enormes lacunas como a redução da existência do negro à condição de escravo, em detrimento de todas as outras dimensões de sua existência. Assim como de suas instituições, suas entidades, sua forma de constituir territórios alternativos. Fato é que, os quilombos existem desde o início do período escravista. No século XVI os quilombos passam a coexistir em paralelo à formação das tão estudadas cidades portuguesas entre aspas. Se nos voltarmos para as artes visuais, veremos também o quão insuficiente é o lugar do negro em boa parte das iconografias mais populares produzidas sobre o período colonial. Produzidas sobretudo no século XIX, quando artistas, mecenas, grupos políticos e setores específicos da sociedade disputavam e manipulavam as narrativas sobre o país, negros e negras serão, por eles, em seus quadros, reduzidos à sujeitos anônimos escravizados. Se percebemos isso, conseguimos entender sobre essa necessidade de libertar a memória da esteriotipização, reivindicada por Beatriz Nascimento.
Pensando nisso, propomos aqui, acionar a artista da dança Ana Pi para dialogar com Beatriz e essas dimensões do trânsito, do tempo e das geografias.
Mineira, formada em dança pela Universidade Federal da Bahia, Ana Pi vive atualmente na França e nos deslocamentos que realiza com frequência. Em “Noir Blue — movimentos de uma dança”, Ana nos presenteia com os registros em imagens dos movimentos que experimentou durante uma viagem. Com uma voz doce, de quem sussurra segredos caros ao pé do ouvido, vai vagarosamente anunciando seu percurso. Inscrevendo seu corpo-movimento em diferentes paisagens, Ana, veste um azul vibrante e esvoaçante e conecta 9 países africanos através da sua presença.
“De tão preto é azul”.
Noir Blue, que pode ser traduzido como Negro (ou preto) Azul, é uma resposta à essa expressão racista.
Dobrando o azul, Ana responde dançando nas periferias do mundo, com a coragem de quem sabe que ao colocar o corpo na rua, recebe dela outros tantos: “Umas pessoas me falavam, ‘ah, você veio da África do Sul. Outras… da Etiópia. Não, você veio do Congo. Não. Você vem de Moçambique? Outras, você veio do Benin? E eu só conseguia pensar: sim! Eu venho de todos esses lugares. Umas coisas eu vejo, outras você tem que imaginar…”. É com essas palavras que Ana nos apresenta seu filme e as reações a sua presença nas terras africanas. Porque a corporeidade, da forma como o geógrafo baiano Milton Santos elabora, é um dado objetivo.
Por onde passa, o corpo negro carrega uma marca visível, condição primeira de julgamento. Mas em África, esse corpo negro diaspórico de uma mulher atlântica, que dança no azul, embaralha a objetividade dos lugares previstos. As geografias incorporadas nas mulheres negras brasileiras, também não cabem em Áfricas específicas. São todas e outras, ao mesmo tempo. Porque sua corporeidade é constituída nos sistemas simbólicos afro-brasileiros, na especificidade e riqueza dessa condição. No trânsito de todos aqueles tempos que falamos anteriormente. Dos deslocamentos históricos aos cotidianos, dos encontros e culturas que foram sendo inventadas nessa vida que partilhamos aqui, dos lugares e das terras que encontramos para viver.
Os territórios todos que criamos nesses processos não escapam ao corpo, pois como afirma Beatriz Nascimento, “a história também está registrada nos nossos corpos, enquanto corpo físico oriundo de uma cadeia de outros corpos na natureza”.
Frantz Fanon, psiquiatra nascido na Martinica e atuante na luta pela independência da Argélia, em seu livro “Pele Negra, Máscaras Brancas”, disserta sobre a diáspora africana, a descolonização e o impacto desses processos na subjetividade de negros e negras. Em trecho desse livro, Fanon faz uma “prece” ao seu corpo: “Oh, meu corpo, faça sempre de mim um homem que questione!”.
Noir blue, além de uma celebração da vida, é um questionamento. É também um reencontro. Um diálogo que mareja os olhos, que enche o peito, que borra as fronteiras do dentro e do fora. Ao evocar as geografias que habitamos, mesmo que a gente não saiba, nos comprometemos a tecer em conjunto nossos territórios de liberdade.
Porque libertar o corpo para viver a memória é emancipador! É talvez uma maneira para pensar a retomada da história, sem os estereótipos temidos por Beatriz Nascimento. É criar um corpo-mapa livre. Um corpo-mapa de países longínquos que possa ter a emancipação como objetivo.
Geri Augusto, professora da Brown University nos Estados Unidos, intelectual diaspórica com trânsitos entre Tanzânia e Angola, Caribe e também Brasil fala da importância de viver a diáspora, de estar conectada com aquilo que o povo negro vive e realiza no mundo. No seu texto: “A língua não deve nos separar” ela aponta que a diáspora nos une em muitas vivências comuns que aparecem transmitidas na música, na literatura, nos filmes, na forma como o povo negro fala em diversas partes, como mexe o corpo e como cria expressões para dar conta de sua vivência que não cabe nos códigos do português, inglês e francês, mas cabe nas gírias. As musseques de Sambizanga, Angola são os Becos da Memória da favela belorizontina Pindura Saia de Conceição Evaristo. Sua “Escrevivência” encontra um correspondente na língua-nação jamaicana com o termo “livature”.
E caminhando para o fim desse segundo episódio, não poderíamos encerrar sem falar da música cósmica da norte-americana Alice Coltrane, que nos acompanhou ao ao fundo. Nascida em Detroit, essa musicista multi-instrumentista, que transita entre piano, órgão, harpa e outros instrumentos, criou a partir do jazz uma música do mundo. A música que estamos escutando se chama Turiya and Ramakrishna e compõe o álbum Ptah, The El Daoud, lançado em 1970. Nessa música Alice Coltrane vai performando seu piano de maneira pouco convencional. Seu piano se agiganta nas linhas melódicas criadas por ela. Conversamos aqui com essa escrita sonora. Nossas palavras voam e dançam em seu ritmo. Nesse jazz místico, Alice já dá indícios do rumo que tomaria nos álbuns seguintes, quando passa a se dedicar a música devocional, que bebe da música negra norte americana e se abre para outras influências, sobretudo daquelas vindas da Índia. Música que parte da diáspora e alça o mundo.
A língua, de fato, não precisa e não deve nos separar. Então, com a música de Alice ao fundo, e o eco do azul de Ana Pi, encerramos esse episódio. Obrigada pela escuta e até o próximo.
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PARA OUVIR O PODCAST
COMO CITAR ESSE TEXTO
PEREIRA, G. et al. Coletiva Terra Preta. Corpo-mapa. 2019. Disponível em: < https://medium.com/@terrapreta/corpo-mapa-d2d22aff1cd2>.
REFERÊNCIAS
ASHRAM: The Spiritual Community of Alice Coltrane Turiyasangitananda | 4:3 Feature Films. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=94P0pqqjiZ0>.
ALEIXO, Ricardo. Pesado demais para a ventania. São Paulo: Todavia, 2018.
Alice Coltrane — Ptah, The El Daoud (1970). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=RzuyR6GeXRg>.
AUGUSTO, Geri. A língua não deve nos separar! Reflexões para uma práxis negra transnacional de tradução. 2013. Disponível em: <http://www.letras.ufmg.br/literafro/artigos/artigos-teorico-criticos/133-geri-augusto-a-lingua-nao-deve-nos-separar>.
EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Florianópolis: Mulheres, 2013.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUfba, 2008.
NASCIMENTO, Maria Beatriz. Beatriz Nascimento, Quilombola e INtelectual: Possibilidades nos dias da destruição. São Paulo: Editora Filhos da África, 2018. 488 p. Coletânea organizada e editada pela UCPA.
NOIR Blue. Minas Gerais/frança: Ana Pi, 2017. Son., color.
PAIVA, Vitor. A música transcendental e a vida iluminada de Alice Coltrane. 2016. Disponível em: <https://www.hypeness.com.br/2016/08/a-musica-transcendental-e-a-vida-iluminada-de-alice-coltrane-companheira-e-pianista-de-john-coltrane/>.
SANTOS, Milton. Ética enviesada da sociedade branca desvia enfrentamento do problema negro: Ser negro hoje. Folha de São Paulo, 07 de maio de 2000. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0705200007.htm.