Cabeça feita

Terra Preta Cidade
11 min readMar 15, 2020

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te convidamos a dialogar com as tramas de cidade e cruzar territórios através do cabelo e da trança.

Arte por Sofia Costa

E iniciamos com as palavras de Nilma Lino Gomes: “Porque o cabelo não é um elemento neutro no conjunto corporal. Ele é maleável, visível, possível de alterações e foi transformado, pela cultura, em uma marca de pertencimento étnico/racial. No caso dos negros, o cabelo crespo é visto como um sinal diacrítico que imprime a marca da negritude nos corpos. Ele é mais um elemento que compõe o complexo processo identitário. Dessa forma, podemos afirmar que a identidade negra, enquanto uma construção social, é materializada, corporificada. Nas múltiplas possibilidades de análise que o corpo negro nos oferece, o trato do cabelo é aquela que se apresenta como a síntese do complexo e fragmentado processo de construção da identidade negra”.

Ainda segundo Nilma “Para o negro e a negra o cabelo crespo carrega significados culturais, políticos e sociais importantes e específicos que os classificam e os localizam dentro de um grupo étnico/racial. No corpo humano, o cabelo é o primeiro motivo de estética, de beleza, possuidor de um elemento maleável que, tal como a madeira e o barro, possibilita diferentes recortes, detalhes e modelagens. Por isso corpo e cabelo, no plano da cultura, puderam ser transformados em emblemas étnicos”.

Por outro lado esse corpo negro desloca e tensiona a cidade. E então vemos a relação presente no salão especializado em tranças afro ou na trançadeira que ocupa um espaço público, ambos produzindo espaços de fortalecimento para a população negra sobretudo para as mulheres negras. E como a trama do cabelo e da trança dialoga com o território? O conceito de território de Milton Santos nos permite ver essa tensão quando diz que: “O território é a base do trabalho, da residência, das trocas materiais e espirituais e da vida, sobre os quais ele influi. Quando se fala em território deve-se, pois, de logo, entender que se está falando em território usado, utilizado por uma dada população.”

Madureira, um bairro do Rio de Janeiro evidencia essa relação, sendo território de grande efervescência cultural negra, presente na história e formação local, na ancestralidade expressa da atuação das trançadeiras e mais recentemente nos movimentos de afirmação positiva do cabelo afro com influências afroamericanas como o movimento Black is beautiful. O movimento foi lançado a partir de lutas civis nos Estados Unidos e difundido ao redor do mundo. Uma das pautas levantadas era a elevação da auto-estima negra através de elementos estéticos como a vestimenta e o penteado dos cabelos. A região possui forte presença do samba, do jongo e no período mais recente é muito presente o estilo hip hop e o funk, todas manifestações culturais de resistência negra.

Esses movimentos locais e históricos transparecem nos salões especializados em tranças, nas galerias de trançadeiras, nos salões de beleza de cortes masculinos, do pente garfo à esponja, do corte na régua ao gel, ultrapassando a dimensão estética e adquirindo também uma dimensão territorial e política de produção do espaço urbano.

A despeito do ato de trançar os cabelos seguimos agora com um relato da experiência recente de Luciana Mayrink, integrante da Terra Preta:

“Em meio às tantas formas de passar pelo processo da transição capilar que vivencio atualmente, encontrei nas tranças beleza, segurança e um olhar ao passado. Quando pensei em trançar, me veio rapidamente um lugar, o Shopping dos cabelos no centro do Rio. Na tão conhecida Rua Sete de Setembro o comércio, que antes fora bem diverso, hoje se dedica exclusivamente a venda de cabelos humanos e sintéticos. A abordagem ao passar pela rua é contínua, todos querendo vender produtos e serviços ao melhor preço, no entanto eu já sabia onde ir. Quanto mais adentrava as galerias, mais cores de cabelos me saltam aos olhos e mais retinta ficava a cor da pele das trançadeiras. Procurei aquelas que trançaram meu cabelo da primeira vez, busquei seus sotaques congoleses mas acabei encontrando outros rostos, desta vez vindos da Angola. Entrei no box bem apertado e já havia uma cliente na minha frente. Aguardei ao som de uma música quase indetectável que vinha de outra loja. Ao terminar a outra cabeça, a jovem trançadeira me chamou e eu sentei em frente ao espelho. O local era bem estreito e praticamente trocamos de lugar para nos mover. Conversamos sobre muitas histórias enquanto o meu cabelo era trançado. A mistura de sotaques no ambiente veio junto com o relato das vivências de tantas que cruzam fronteiras geográficas e se encontram naquele mesmo lugar, no centro do Rio. Se ver na cor da pele, na textura dos cabelos, nas mãos negras que produzem e ocupam esse espaço tão urbano, é me encontrar nas que vieram antes de mim e me permitiram ser que eu sou hoje.”

A trama urbana feita pelas trançadeiras ultrapassa os limites dos salões de cabeleireiros. Está presente nas escadarias, nas esquinas, nas calçadas, nos espaços públicos e nas casas. A trançadeira que vai até a casa para trançar nos remete a dimensão do cuidado e da troca. A trança é um fio condutor para dialogar sobre a autoestima, ancestralidade e representatividade étnica de mulheres negras. Raísa, que é geógrafa e trançadeira negra nos conta agora um pouco do seu processo de trançar.

“aprendi a trançar cabelo com minha mãe e minhas tias. Elas sempre trançaram meu cabelo quando eu era criança e por meu cabelo ser muito crespo e cheio, a intenção era me deixar sempre arrumada. Elas são de Pirajuía, um distrito do Recôncavo Baiano e lá é muito comum as mulheres trançarem os cabelos umas das outras em ocasiões especiais. Eu comecei a traçar profissionalmente em 2016, quando eu precisei deixar algumas atividades para conseguir pegar algumas disciplinas e me formar em geografia e comecei a usar muito a internet pra divulgar as fotos das tranças que eu fazia, tanto pra aprender. Comecei a trançar muito o cabelo de amigas, irmãs e mulheres. Isso fez com que eu trabalhasse muito na casa dessas mulheres. É um trabalho relativamente mais confortável do que trabalhar na rua, a gente conversa bastante, principalmente sobre estética negra, sobre questões da vivência da mulher negra. Nesse tempo eu rodei a cidade inteira. Em 2018 eu trabalhei em um salão em belo Horizonte, me mudei pra lá com pouquíssimo dinheiro e logo consegui um emprego em um salão especialista em estética negra. Foi muito para aprender outras coisas como a organização financeira e divulgação do meu trabalho.”

Conforme Raul Lody diz em Cabelos de Axé, “cuidar dos cabelos é antes de tudo, cuidar da cabeça, um espaço profundamente simbólico. É, por extensão, cuidar da pessoa. Pentear os cabelos é um momento ritualizado de vivenciar tudo o que a cabeça representa para a pessoa e para seu grupo.”

Voltamos a referenciar Nilma que nos fala que “A força simbólica do cabelo para os africanos continua de maneira recriada e ressignificada entre nós, seus descendentes. Ela pode ser vista nas práticas cotidianas e nas intervenções estéticas desenvolvidas pelas cabeleireiras e cabeleireiros étnicos, pelas trançadeiras em domicílio, pela família negra que corta e penteia o cabelo da menina e do menino. Pode ser vista também nas tranças, nos dreads e penteados usados pela juventude negra. Se no processo da escravidão o negro não encontrava no seu cotidiano um lugar, quer fosse público ou privado, para celebrar o cabelo como se fazia na África, no mundo contemporâneo alguns espaços foram construídos para atender a essa prática cultural. Os salões étnicos espalhados pelas mais diferentes cidades e estados brasileiros apresentam-se como um dos espaços em que essa celebração é possível.”

O cabelo também é o ponto de partida para a trama MC K-Bela de Yasmin Thayná conforme detalha Gabriela Gaia, integrante da Terra Preta, no livro Corpo, discurso e território . MC K-Bela é um pequeno conto que retrata a relação da autora com seu cabelo crespo. No conto ela relembra passagens de sua infância repleta de processos afetivamente marcantes. Ela traz para o campo do visível o embate político cotidiano travado desde sua infância e adolescência, sobretudo no ambiente escolar e familiar, devido ao seu cabelo crespo”.

Já no curta K-Bela, lançado em 2015 e já conhecido por muitas e muitos de nós, Yasmin traz o processo de enegrecimento vivenciado por uma personagem, revertendo o secular processo de branqueamento experimentado em toda a sua vida. Até hoje a ideia de branqueamento domina o imaginário nacional, tanto como ideal de beleza quanto como possibilidade de ascensão na hierarquia social”. Mas também é crescente o des-embranquecer resgatando a ancestralidade que é tão evidenciada através da trança e do ato de trançar.

Nossa trama se desloca agora para São Paulo, onde o antropólogo Hélio Menezes, dialogou em um de seus trabalhos recentes com um reduto da cultura afro na cidade de São Paulo: a Galeria Presidente, mais conhecida como Galeria do Reggae, localizada no bairro da República. Lá existem cabeleireiros em todos os pisos do edifício e para de atrair clientes para suas lojas, mulheres negras se articulam na calçada para convidar os passantes a cuidarem de seus cabelos. Mais do que a galeria, o bairro da República é também um território negro que recebe imigrantes africanos e haitianos. Conversamos um pouco com Hélio em outubro de 2019 sobre esse trabalho que foi realizado para a 12a Bienal de Arquitetura:

“O trabalho de pesquisa para a bienal de arquitetura que se chamou Nova República, foi um trabalho em parceria com um escritório da África do Sul, chamado Wolf. Foram 4 meses de pesquisa, sobretudo sobre a relação entre o Sesc 24 de Maio e a Galeria do Reggae, que é um prédio histórico no centro de São Paulo, que ao menos desde os anos 1970 tem uma ocupação muito sistemática de pessoas negras. A princípio uma população preta de São Paulo e hoje em dia, brasileira e de imigrantes africanos e haitianos, é portanto, um lugar de identidade negra muito forte. Se na Galeria nos anos 70 já existia forte a presença de salão de beleza, eles eram minorias porque a maior parte das lojas eram voltadas à produção musical e à música, sobretudo música black. Mas com o passar dos anos, a Galeria se tornou uma referência de fato na indústria capilar e a oferecer serviços de cabelo e também loja de produtos voltados a essa indústria, de modo a se tornar referência nessa questão e um centro de cultura capilar negra muito grande no centro de São Paulo. Acontece que, nesses meses de pesquisa — em conversa com os frequentadores, lojistas da Galeria- é que embora que seja um lugar muito histórico e muito importante das culturas negras, é um lugar bastante marginalizado. O prédio não passa por reformas estruturai há bastante tempo, acontece perseguição policial intensa e contínua, sobretudo nos últimos anos com o aumento do fluxo de imigrantes, de modo que é um lugar bastante vigiado. Outra mudança possível de observar nos últimos anos pra cá é a presença de mulheres negras -brasileiras e imigrantes-, sobretudo na rua, em frente à Galeria do Reggae. Algumas dessas mulheres são trançadeiras e trazem variados tipos de trança, penteados e cortes de cabelo, o que é algo muito interessante porque elas trazem consigo vários elementos de estética negra dos seus países de origem e que chegando em São Paulo vão se misturando com outras linguagens locais. Aquela região é uma grande universidade do cabelo crespo, de onde se realizam variados tipos de trança e penteados.

Outro ponto interessante que surgiu na conversa com as mulheres, é que aquela região vai virando uma espécie de território negro marcado muito pela cultura capilar, embora não só. E esse território vai se espalhando a medida que isso vai se espalhando para as ruas do entorno -Rua Dom José Gaspar, a praça da República-, cada vez mais tomadas por essas profissionais que convidam os transeuntes a realizar essas atividades capilares. Assim o território vai se espalhando, marcado por essa característica e são lugares em que as percepções do próprio público que está caminhando mudam bastante, se for uma mulher ou homem negro ou se são outras pessoas de outras marcações raciais e outros fios de cabelo, porque as interpelações dessas mulheres que ficam na rua se dirigem majoritariamente para as pessoas negras que passam. De modo que não só culturalmente marcado pelos serviços capilares, mas vai se modificando através das percepções, sentimentos, por conta de ser um território da universidade popular do cabelo crespo, as sensações de vivências naquela rua são diferentes para pessoas negras e pessoas não negras. Caminhar pela República, no Centro de São Paulo, se você é uma pessoa preta, você tem um certo tipo de experiência. Esse território crespo gera outros tipos de sociabilidade e de experiências corporais, que são definidas por perecimento cultural e racial de identificação com aquelas mulheres e com os serviços capilares.

Se constrói, portanto, na região da Galeria do Reggae e do Centro de São Paulo um território negro com pessoas de diferentes origens, nacionalidades, idiomas, se encontram em algo comum e esse comum é sobretudo o cuidado com o cabelo, com a cabeça do outro.”

Imagem divulgação — Heinrich Wolff

Hélio Menezes nos projeta para uma conexão afrodiaspórica que continuamos ao mergulhar na tese de Mpho Matsipa, pesquisadora na Wits City Institute, na Universidade de Witwatersrand. Mpho contextualiza sobre essa trama do cabelo e da trança na cidade de Joanesburgo quando diz:

“Meu cabelo é a única conexão que tenho com o centro da cidade.”

Isso porque durante o período de desregulamentação, no início dos anos 90, o centro da cidade acomodou um grande número de mulheres africanas que trançavam cabelos nas ruas. A paisagem de cabelos e beleza refletiam mudanças nos padrões de assentamento e uso da terra, aumentando a migração regional e internacional feminina, bem como as transformações nas práticas culturais e espaciais negras no centro da cidade de Joanesburgo”. Esse movimento também diversificou as técnicas de trança disponíveis na cidade. Essas mulheres introduziram novos estilos e técnicas de trança com fluidez e atenção aos detalhes. Ainda segundo Mpho, ‘as transformações no centro da cidade produziram novas espacialidades, novas subjetividades e aspirações, dissonantes das preocupações colonialistas e globais com a contenção, vigilância e regulação da população urbana. Ao analisar e se debruçar sobre esse movimento Matsipo nos brinda com seguinte frase presente em sua tese: Como epistemologia, a trança interrompe a grande narrativa de Joanesburgo em ‘crise’, além de interromper a estrutura colonizadora e de gênero dos próprios estudos urbanos”.

Arquiteta e urbanista Mpho Matsipa

De hoje em diante não quero alisar meu cabelo. Não quero!

E vou rir daqueles, que por evitar — segundo eles — que por evitar-nos algum dissabor

Chamam aos negros de gente de cor

E de que cor!

NEGRA

E como soa lindo!

(Gritaram-me Negra, Victoria Santa Cruz, 1960)

E é nessa perspectiva tão potente que nos despedimos dessa pequena viagem envolvida na trama do cabelo, da trança e desses tantos territórios onde as histórias e conexões se entrelaçam em meio ao chamado afro-diaspórico de des-embranquecer as cidades.

(Texto escrito em setembro de 2019)

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PARA OUVIR O PODCAST

COMO CITAR ESSE TEXTO

PEREIRA, G. et al. Coletiva Terra Preta. Cabeça feita. 2019. Disponível em: < https://medium.com/@terrapreta/cabe%C3%A7a-feita-29d0b0d14397>.

REFERÊNCIAS

DELAQUA, Victor. Nova República: um retrato do Brasil em microescala. 2019. Disponível em: <https://www.archdaily.com.br/br/925481/nova-republica-um-retrato-do-brasil-em-microescala?utm_source=feedburner&utm_medium=feed&utm_campaign=Feed%3A+ArchdailyBR+%28ArchDaily+Brasil%29>.

GOMES, Nilma Lino. Cultura negra e educação. Revista Brasileira de Educação, Minas Gerais, p.75–85, jan. 2003. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n23/n23a05.pdf.

GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-content/uploads/2012/10/Corpo-e-cabelo-como-s%C3%ADmbolos-da-identidade-negra.pdf)

LODY, Raul. Cabelos de Axé: Identidade e Resistência. Rio de Janeiro: Editora SENAC Nacional, 2004.

MATSIPA, Mpho. Woza! Sweetheart! On braiding epistemologies on Bree Street. Thesis Eleven, South Africa, v. 14, p.31–48, jan. 2017.

SANTOS, M.; SILVEIRA, M. L. O Brasil: território e so- ciedade no início do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2001.

Inraisa Cabelo Afro — https://instagram.com/inraisacabeloafro

Performance Bombril Oficina Identidade e afrontamento com Priscila Rezende — https://youtu.be/NEfDILF7mOE

#ResidênciasLABxS: Entrevista com Val Souza (parte 1) — https://www.youtube.com/watch?v=VaiiEpjwtW0

KBELA O filme — https://www.youtube.com/watch?v=LGNIn5v-3cE

Victoria Santa Cruz — Gritaram-me negra — https://www.youtube.com/watch?v=RljSb7AyPc0.

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Written by Terra Preta Cidade

Coletiva multiterritorial e interseccicional que visa educar, pensar, criar, ampliar as narrativas e práticas para des-embranquecer a cidade.

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